quinta-feira, 4 de outubro de 2012

sertões: ocupação do sertão, a canção de um povo

Vim de um lugar triste cujo povo, paradoxalmente, não conhecia tristeza. Não sabendo mais nada além dos campos, várzeas e da coroa da serra além também não precisava de mais nada. Mas sonhava. Ah! como sonhava!

Enquanto dividiamos o cotidiano com os pais, os irmãos, um ou outro parente vindo de longe para pernoitar, íamos sonhando com os amores, "sonhos maravilhosos" como diria um filho de Pedro Leopoldo, ali perto do Rio das Velhas.Mas estamos nos limites do Indaiá, e Pedro Leopoldo e seu famoso filho ainda eram um ponto distante como a mais distante estrela no céu.

Na Sesmaria dos Corrêa cantava o pássaro preto "você finca, você finca, eu arranco" enquanto uma gente de valia pisava  o trilho se esgueirando das cobras e vigiava a floresta de onde os bichos e os homens, nativos, ou não, podiam emergir a qualquer momento propondo o confronto; ou pondo uns ou outros pra correr. Cuidado, e muito, com as mulheres. Tantos eram os  perigos que homem saía só. Mas em 1960 um homem e uma mulher de nome Teresa, levando o primeiro filho no colo, uma a pé e outro a cavalo, se revezavam, enquanto iam da roça à cidade, e já estavam bem, considerando os apuros do Linval e sua mulher, no passado, quando se instalaram por aqueles lados, herdeiros de outros que vieram em 1800, ou um pouco antes.

Em toda a parte a parceria com a mulher, a construção da família; mas até que tudo se acertasse os moços e as moças aguçavam o olhar pela estrada por onde viria, passando pela porteira, a companhia de toda a vida.

Minha mãe se lembrava da solidão nas fazendas dos mais velhos. Na casa de sá Candinha cantava a rola, e era só melancolia o seu cantar. A rola tinha ninho, e nutria filhotes, mas os velhos tinham toda a vida vivida e os filhos e descendentes estavam longe cuidando de seus currais, e a jovem que vinha lhes fazer companhia sofria no ermo onde nada acontecia.

Na casa dos pais tinha a companhia a que se acostumara, o gado prá tocar, as andanças à toa, os camaradas  que tiravam o leite desde a madrugada, (e ela junto arrebanhando o gado) a fazenda e o cavalo em pelo para montar. Nada lhe doía mais que as tardes na fazenda dos avós. Tudo se recolhia. A sombra descendo sobre o sertão ia levando a gente prá dentro da casa, onde ainda mais sombra havia. Pouca lamparina, economia de querosene, sem dúvida. Velas não se usava. Talvez um lampião ? E alí olhando para as paredes escuras e o teto ainda mais escuro e sombrio se esperava pela hora de ir para a cama. Nem sempre para dormir. Vendo os vãos entre os quartos muito tempo podia passar até que o sono chegasse.
De manhã era melhor. O sol depois do escuro fincava alegria no coração da gente sem querer, e o corpo ia se animando com a presença do café, da quitanda. Coisa saborosa. Depois era andar por ali sem muito o que encontrar. Para mim, criança, havia umas abóboras compridas que fingia ser bonecas.
Mas eu vinha da cidade. Quem era criado ali se acostumava e tinha o que fazer e era bom demais. Havia quem cismava e não ia prá cidade, de jeito nenhum. Tempo de revesar, uma turma na cidade e outra na Mata? Discussão na certa, malcriação, má vontade. Mesmo sendo a cidade um paradeiro só, sem nem carro pelas ruas empoeiradas, ninguém queria sair da roça.

Por isso a tristeza com que pintaram o Jeca, ( Monteiro Lobato), a tristeza que o Cunha Corrêa punha nos olhos da lembrança dos seus próprios antepassados é uma coisa da imaginação da cidade.
Não tinha folguedos, não, não tinha. Tinha a intimidade estreita com o corpo e suas boas sensações se revezando todo o dia e era bom demais.
Tinha as prosas, a presença de um ou outro, que também preenchia a mente e falava bem ao coração.
A presença das terras ao redor era a garantia de mais um dia, mais uma tarefa a fazer. Mas havia as dificuldades com o corpo doente, a insegurança dos que eram meeiros, e outras mazelas da vida. Havia. Mas tristeza, essa não ví.

Mas, passemos a palavra ao Cunha Corrêa:
"Que monótona que devêra ser a vida das primeiras famílias. (...)Tudo era brenha; tudo era solidão triste, abafada e enervante. (...) Convenhamos que eram temerários, rijos e estòicamente resignados êsses primeiros que, com espôsas e filhos, vieram ter a sertão inculto, desolado, baldo de todo e qualquer recurso da mais rudimentar civilização.(...) Florestas virgens, exuberantes, quase todas ainda intactas, que perlongavam o S.Francisco, de leito raso e ribeiras baixas (...) transbordando e fazendo refluirem seus tributários, avançava varjões e mataria além, em largura de mais de quilômetro, inundando tudo e isolando as fazendas e seus habitantes. (...) E durante meses, 3 e 4 às vezes, ficavam inteiramente insulados até dos fazendeiros vizinhos."

E, concluindo, reclamo a lembrança de algo que li sobre um encontro de um viajante que encontrou na Serra da Canastra um homem a andar por ali, só, e, indagado de onde era disse morar ali. E, indagado se não se sentia só naqueles ermos, ele disse com um ponto final "Vim com minha mulher".

Mas, em nenhuma parte da casa de fazenda uma viola, nem acordeão, nem pandeiro. Nem ouvi uma canção naqueles ermos. Antes também era assim. Não de davam ao canto. Não se davam à dança. Na  verdade os jovens dançaram, minha mãe foi a bailes. Mas não era comum. Onde? Na cada dos agregados de confiança? De algum outro fazendeiro? Seu pai não dava bailes.

Sobre o acordeão, uma prima tinha muita vontade de tocar. Me perguntou o que achava. Disse que era bonito. Ela parecia ter algum preconceito, mas achava bonito. Porém nunca se atreveu a tentar.
Por outro lado, quando tinha nove anos ouvi de uma tia avó uma estranha canção, provocativa,
com um recadinho para os pais (do seu tempo), só um versinho, em lenta cadência: "mamãe já tenho nove anos e posso me casar." Uma canção do século dezenove, o século dela. Onde ela aprendeu?


Francisco Indaiá



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